Segundo dia de aulas. Continua o desassossego, com
o pessoal a trocar Beijos, abraços e confidências, depois desta longa separação
que foram 3 meses e meio de férias.
Estávamos todos fartos do verão, com saudades
uns dos outros. A sala é a mesma do ano passado, no 1º andar e cheirava a nova,
tudo encerado e polido, apesar do material já ser mais do que velho. Somos o
7.º A e como não chumbou nem veio ninguém de novo, a pauta é exactamente igual
à do ano passado. Eu sou o n.º 34, e fico sentada na segunda fila, do lado da
janela, cá atrás, que é o lugar dos mais altos.
Hoje tivemos, pela primeira vez, Organização Política e apareceu-nos um
professor novo, acho que é a primeira vez que dá aulas em Setúbal, dizem que
veio corrido de um liceu de Coimbra, por causa da política.
Já ontem se falava à boca cheia dele, havia malta muito excitada e contente
porque dizem que ele é um fadista afamado. Tenho realmente uma vaga ideia de
ouvir o meu tio Diamantino falar dele, mas já não sei se foi por causa da cantoria
se por causa da política. A Inês contou que ouviu o pai comentar, em casa, que
o homem é todo revolucionário, arranja sarilhos por todo o lado onde passa. Ela
diz que ele já esteve preso por causa da política, é capaz de ser comunista. Diferente dos outros professores, é de certeza. Quando entrou na
sala, já tinha dado o segundo toque, estava quase no limite da falta.
Entrou por ali a dentro, todo Despenteado, com uma
gabardine na mão e enquanto a atirava para cima da secretária, perguntou-nos:
- Vocês são o 7.º A, não são? Desculpem o atraso
mas enganei-me e fui parar a outra sala. Não faz mal. Se vocês chegarem
atrasados também não vos vou chatear.
Tinha um ar simpático, ligeiro, um visual que não se enquadrava nada com a
imagem de todos os outros professores. Deu para perceber que as primeiras
palavras, aliadas à postura solta e descontraída, começavam a cativar toda a
gente.
A Carolina virou-se para trás e disse-me que já o
tinha visto na televisão, a cantar Fado de Coimbra. Realmente o rosto não me
era estranho. É alto, feições correctas, embora os dentes não sejam um modelo de perfeição e é bem parecido, digamos que um homem
interessante para se olhar. O Artur soprou-me que ele deve ter uns 36 anos e
acho que sim, nota-se que já é velho. Depois das primeiras palavras, sentou-se
na secretária, abriu o livro de ponto, rabiscou o que tinha a escrever e ficou
uns cinco minutos, em silêncio, a olhar o pátio vazio, através das janelas da
sala, impecavelmente limpas.
Enquanto ele estava nesta espécie de marasmo nós começámos a bichanar uns com
os outros, cada um emitindo a sua opinião, fazendo conjecturas. Às tantas, o
bichanar foi subindo de tom e já era uma algazarra tão grande que parece tê-lo
acordado. Outro qualquer professor já nos teria pregado um raspanete, coberto
de ameaças, mas ele não disse nada, como se não tivesse ouvido ou, melhor, não
se importasse. Aliás, aposto que nem nos ouviu. O ar dele, enquanto
esteve ausente, era tão distante que mais parecia ter-se, efectivamente,
evadido da sala. Quando recomeçou a falar connosco, em pé, em cima do estrado,
já tinha ganho o primeiro round de simpatia.
Depois, veio o mais surpreendente:
- Bem, eu sou o vosso novo professor de Organização Política, mas devo dizer-vos
que não percebo nada disto. Vocês já deram isto o ano passado, não foi? Então
sabem, de certeza, mais que eu.
Gargalhada geral.
- Podem rir porque é verdade. Eu não percebo nada disto, as minhas disciplinas,
aquelas em que me formei, são História e Filosofia, não tenho culpa que me
tivessem posto aqui, tipo castigo, para dar uma matéria que não conheço, nem me
interessa. Podia estudar para vir aqui
desbobinar, tipo papagaio, mas não estou para isso. Não entro em palhaçadas.
Voltámos a rir, numa sonora gargalhada, tipo coro afinado, mas ele ficou
impávido e sereno. Continuava a mostrar um semblante discreto, calmo,
simpático.
- Pois é, não vou sobrecarregar a minha massa cinzenta com coisas absolutamente
inúteis e falsas. Tudo isto é uma fantochada sem interesse. Não vou perder um
minuto do meu estudo com esta porcaria.
Começámos a olhar uns para outros, espantados; nunca na vida nos tinha passado
pela frente um professor com tamanha ousadia.
- Eu estudaria, isso sim, uma Organização Política que funcionasse, como noutros
países acontece, não é esta fantochada que não passa de pura teoria. Na prática
não existe, é uma Constituição carregada de falsidade. Portugal vive numa
democracia de fachada, este regime que nos governa é uma ditadura desumana e
cruel.
Não se ouvia uma mosca na sala. Os rostos tinham deixado cair o sorriso e
estavam agora absolutamente atónitos, vidrados no rosto e nas palavras daquele
homem ímpar. O que ele nos estava a dizer é o que ouvimos comentar, todos os
dias, aos nossos pais, mas sempre com as devidas recomendações para não o
repetirmos na rua porque nunca se sabe quem ouve. A Pide persegue toda a gente
como uma nuvem de fumo branco, que se sente mas não se apalpa.
- Repito: eu não percebo nada desta disciplina que vos venho leccionar, nem
quero perceber. Estou-me nas tintas para esta porcaria.
Mas, atenção, vocês é outra coisa. Vocês vão ter que estudar porque, no final
do ano, vão ter que fazer exame para concluírem o vosso 7.º ano e poderem
entrar na Faculdade. Isso, vocês tem que fazer. Estudar.
Para serem homens e mulheres cultos para poderem combater, cada um onde
estiver, esta ditadura infame que está a destruir a vossa pátria e a dos vossos
filhos. Vocês são o amanhã e são vocês que têm que lutar por um novo país.
Não vão precisar de mim para estudar esta materiazinha de chacha, basta
estudarem umas horas e empinam isto num instante. Isto não vale nada. Eu venho
dar aulas, preciso de vir, preciso de ganhar a vida, mas as minhas aulas vão
ser aulas de cultura e política geral. Vão ficar a saber que há países onde existem regimes diferentes deste, que nos
oprime, países onde há liberdade de pensamento e de expressão, educação para
todos, cuidados de saúde que não são apenas para os privilegiados, enfim,
outras coisas que a seu tempo vos ensinarei.
Percebem?
Nós temos que aprender a não ser autómatos, a pensar pela nossa
cabeça. O Salazar quer fazer de vocês, a juventude deste país, carneiros, mas
eu não vou deixar que os meus alunos o sejam. Vou abrir-lhes a porta do
conhecimento, da cultura e da verdade. Vou
ensinar-lhes que, além fronteiras, há outros mundos e outras hipóteses de vida,
que não se configuram a esta ditadura de miséria social e cultural.
Outra coisa: vou ter que vos dar um ponto por período porque vocês têm que ter
notas para ir a exame. O ponto que farei será com perguntas do vosso livro que
terão que ter a paciência de estudar. A matéria é uma falsidade do princípio ao
fim, mas não há volta a dar, para atingirem os vossos mais altos objectivos.
Têm que estudar. Se quiserem copiar é com
vocês, não vou andar, feita toupeira, a fiscalizá-los, se quiserem trazer o
livro e copiar, é uma decisão vossa, no entanto acho que devem começar a
endireitar este país no sentido da honestidade, sim
porque o nosso país é um país de bufos, de corruptos e de vigaristas.
Não falo de vocês, jovens, falo dos homens da minha idade e mais velhos, em
qualquer quadrante da sociedade. Nós temos sempre que mostrar o que somos,
temos que ser dignos connosco para sermos dignos com os outros. Por isso, acho
que não devem copiar. Há que criar princípios de honestidade e isso começa em
vocês, os futuros homens e mulheres de Portugal. Não concordam?
Bem, por hoje é tudo, podem sair. Vemo-nos na próxima aula.
Espantoso. Quando ele terminou estava tudo lívido,
sem palavras. Que fenómeno é este que aterrou em Setúbal?
Já me esquecia de escrever. Esta ave rara, o nosso professor de Organização Política,
chama-se Zeca Afonso.
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