Coimbra tem o seu feriado municipal no dia 4 de julho, altura em que se celebram as Festas da Cidade (de 3 a 7 de julho) em honra da padroeira, a Rainha Santa Isabel, em todos os anos pares.
Isabel era a filha mais velha de D. Pedro III, Rei de Aragão e casou com D. Dinis, na altura com 19 anos e já rei de Portugal, a pedido deste a seu pai através de emissários ali enviados. Isabel, era uma infanta muito pretendida pois emissários de França e Inglaterra com o mesmo propósito, aguardavam a decisão de seu pai. Pensa-se que seu pai optou por autorizar D. Dinis a desposá-la por ser já Rei enquanto os outros pretendentes eram ainda príncipes.
Então, a 11 de Fevereiro de 1282, com apenas 12 anos, Isabel casou-se por procuração com D. Dinis, em Barcelona, tendo conhecido seu esposo em 26 de Junho do mesmo ano, celebrando-se as bodas em Trancoso, local de encontro das duas comitivas e tendo D. Dinis acrescentado ao seu dote essa mesma vila de Trancoso que não constava do “lote” inicial com Abrantes, Óbidos, Alenquer e Porto de Mós.
Do casamento tiveram dois filhos, Constança que casou com Fernando IV de Castela e Afonso, mais tarde Afonso IV que sucedeu a seu pai no trono.
D. Isabel, conhecida pelo “Milagre das Rosas” e por tudo o que esta simbologia pretende demonstrar, foi uma figura preponderante na mediação de contendas e desavenças, nomeadamente a que opôs seu filho Afonso a um “irmão bastardo” (Afonso Sanches, o único filho bastardo de D. Dinis reconhecido). Com seu pai bastante doente, o herdeiro legítimo sentia-se ameaçado pela possibilidade do “irmão bastardo” suceder a seu pai no trono e esteve iminente a chamada Peleja de Alvalade … que Isabel evitou mediando o conflito entre irmãos.
Na época, era frequente nos círculos nobres a existência de “damas preferidas” que, pelo desconhecimento das modernas técnicas de planeamento familiar, originavam filhos bastardos mais ou menos legitimados pelos seus pais.
D. Dinis era um homem como outros … tentado pelo pecado da carne e “diz-se” que teria uma amante para os lados do que é hoje Odivelas … D. Isabel sabendo da existência dessa amante dizia apenas “ide vê-las …” o que terá originado o actual nome Odivelas …
Bem … feita esta pequena introdução que visa contextualizar a actualidade, volto ao assunto que aqui me trouxe: a procissão e a palestra.
Realizou-se anteontem a procissão nocturna de penitência, em que a imagem da Rainha Santa sai do Convento de Santa Clara-a-Nova, num andor que viaja pelas ruas da cidade. À meia-noite em ponto, o andor, transportado por dezasseis homens da Irmandade da Rainha Santa, chega às portas da cidade (Largo da Portagem).
As luzes públicas apagam-se e um sacerdote, previamente designado faz uma palestra, começando assim:
«Rainha Santa, bem-vinda sejas à Cidade de Coimbra...».
Seguidamente, são colocadas nas varandas colchas que, à passagem do andor, se abrem, deixando cair pétalas sobre a imagem, a lembrar o Milagre das Rosas. A imagem é levada, finalmente, para a Igreja da Graça, onde costuma permanecer até domingo. Nesse dia, às 15 horas, a Rainha Santa regressa ao convento, na chamada procissão maior, permanecendo aí por mais dois anos."
Este ano, e o que não acontecia desde 1936, a imagem fica até domingo na Igreja de Santa Cruz onde estão sepultados D. Afonso Henriques e D. Sancho.
Decidi ir ver a procissão, coisa que já não fazia há 18 anos … morava ainda em Coimbra, a Lena estava grávida do João e recordo uma noite quente, em que nos sentámos, como muitas outras centenas de pessoas, na relva do Parque da Cidade, bem perto do cais do “Basófias”, enquanto aguardávamos que a imagem da Rainha Santa chegasse ao Largo da Portagem para ouvirmos a “palestra”.
Este ano e apesar de fria e com vento desagradável, a ponte Santa Clara e todo o percurso da procissão estava apinhado de gente, devotos e curiosos, turistas que não queriam deixar passar a oportunidade de vivenciar também eles um momento único da vida da cidade: a homenagem à sua padroeira.
O esperado momento no Largo da Portagem e, à meia-noite em ponto, as luzes apagaram-se com o andor mesmo à saída da ponte, virado para Coimbra, apenas ele iluminado por uma luz clara e forte, destacando bem a imagem da Santa Rainha na escuridão nocturna.
Uma introdução musical difundida por altifalantes estrategicamente colocados, … creio se tratava do “Kyrie” interpretado pelo Coro dos Antigos Orfeonistas da Universidade de Coimbra e depois a “palestra”.
Confesso que foi uma surpresa muito grande o teor da mesma … uma mensagem política plena de assertividade e com a-propósito acutilante. O palestrante, Pe Jesus Ramos creio, da paróquia de S. Bartolomeu, depois de dar as boas vindas a Isabel, e de algumas palavras de circunstância sobre o momento de fé e união católica dos presentes, dissertou sobre a “mensagem de inquietação” de que a Rainha era portadora … “inquietação pelo não cumprimento da palavra dada aos portugueses antes das eleições …”, “pelas promessas não cumpridas”, pelo “execrável comportamento de quem não paga os salários a quem trabalhou ..” “que fraudulentamente enriquecem enquanto a seu lado outros vivem a pobreza envergonhada!!!!
Por momentos, fechei os olhos e se não soubesse, poderia afirmar que estava numa reunião de activistas, sindicalistas, defensores dos direitos humanos …
Este discurso, levou-me a pensar que, de facto, a Igreja pode ter um papel na sociedade que vai para além do que simplesmente se limita a reunir pessoas duma mesma fé, dum mesmo credo … pode, deve e tem-no feito (pelo menos alguns dos seus representantes) despertando consciências, apontando desmandos e injustiças …
Vim de lá com o espírito aliviado pelos momentos de reflexão que proporcionei a mim mesmo e o coração mais alegre por ver que as minhas preocupações são, afinal, partilhadas, por uma instituição que demonstra ter preocupações sociais que, até aqui pelo menos, não eram exibidas de forma tão evidente e, se o eram, apenas por figuras “desalinhadas” do status quo.
A indignação dos injustiçados toma forma ....
A indignação dos injustiçados toma forma ....
Sem comentários:
Enviar um comentário